#1
A grande crise de saúde mental que está cada vez mais em evidência por aí pode parecer um tanto artificial e um outro tanto forçada. Acho que é natural esse sentimento se manifestar em algumas pessoas já que parece algo que surge meio que do nada e acaba por ocupar grande espaço na pauta de diversas publicações. E não ajuda a forma como o tópico costuma ser abordado: com listinhas de 10 pontos infalíveis, saídas supostamente simples (como sair para caminhar para relaxar) e coisas do tipo. Não é algo de solução fácil.
Mas a crise existe e ela é desastrosa. E se fosse realmente fácil ela já teria sido domada. Por isso o melhor jeito de se inteirar sobre o tamanho do pepino é começar a entender o que vem acontecendo nos últimos anos e o impacto que isso vem causando nas pessoas.
E se houver um único ponto positivo nessa exposição recente do fenômeno acho que é poder dar visibilidade a um sofrimento real. E, em paralelo, espero que seja também uma via para pavimentar relações mais harmônicas, novas legislações trabalhistas e um caminho de menos sofrimento num futuro bem próximo.
#2
Estou de licença do trabalho há seis meses. Ao me dar conta disso, o que primeiro vem à mente? Nessa ordem:
Que vergonha insuportável estar tanto tempo fora do trabalho.
Que peso horrível para minha família e meus amigos mais próximos.
Que privilégio imenso e ao mesmo tempo constrangedor. Estou sem trabalhar há tanto tempo, recebendo tratamento, melhorando aos poucos e tudo isso sem passar por qualquer dificuldade financeira. No Brasil (ou em muitos outros lugares) provavelmente eu teria que calar a boca e fingir que nada está acontecendo como fiz até pouco tempo, até o copo transbordar.
Dá para notar algum padrão? Pois é. Vergonha. Culpa. Frustração. O pacote todo aliado a uma dívida eterna com os outros. Comecei a priorizar meu bem-estar quando a coisa já tinha degringolado completamente.
Levei quase até o último mês da minha licença médica para finalmente conseguir admitir em voz alta: eu estou sofrendo um burnout. Na verdade, precisei de alguém me dizendo em alto e bom som para finalmente processar internamente. Não adiantaram sinais claros, nem preencher teste após teste indicando a situação de alto risco. E, mesmo com esse reconhecimento tardio, dá para perceber no exercício acima que ainda assim não ajudou muito a aliviar o peso criado por essa situação.
Mesmo num país onde a crise tem nome e números e uma rede de apoio pública e privada, é difícil se movimentar num terreno onde estar doente não se encaixa nas expectativas de quem te olha saindo na rua. Não estou preso na cama, nem num hospital, nem preciso de cuidado constante. Estou em casa pois estou doente geralmente é acompanhado de estupefação ou uma rápida guinada no assunto do small talk inicial.
Estou bem, mas já estive bem pior. Na real hoje é um dia bem ruim. Estou bem fisicamente, mas meio desgraçado da cabeça. Essas são algumas das respostas que tenho dado para a fatídica pergunta (sim, aquela). Mas em alguns dias sim, estou simplesmente bem. O que parece automaticamente me habilitar a retornar o quanto antes às atividades. Até que vem o outro dia. E o outro. E o outro. E a gente vê que não funciona bem assim.
Isso não existia antes. Agora tudo é burnout. No meu país de origem ou como fui criado, a gente não pensa nisso e toca a ficha. Ninguém me disse isso: eu travo esses diálogos mentalmente todos os dias assim que acordo. Mesmo inserido na dificuldade, tudo parece ser questionável, forçado ou simplesmente distante do real. É enlouquecedor.
Não tenho nenhum insight enriquecedor para oferecer, nenhum conselho para dar. Provavelmente é um assunto ao qual voltarei algumas vezes. Mas me pareceu relevante trazer à tona já que tantas pessoas estão vivenciando isso, todos os dias. E é um assunto com o qual quase ninguém sabe lidar direito. Mas não precisa ser assim. Não vai ser sempre assim.
Na real, tenho um conselho sim: tá pesado demais? Fale com alguém. Está apresentando sintomas que impedem seu funcionamento básico no dia a dia? Procure ajuda. Por que isso é algo que não tende a desaparecer e vai cobrar seu preço mais cedo ou mais tarde. Se já não está cobrando.
#3
Algumas recomendações de coisas que me impressionaram, fascinaram ou emocionaram recentemente:
Podcast
Primeiro Contato: o jornalista Henrique Sampaio criou um documento essencial que narra os primórdios e desenvolvimento da computação e da internet comercial no Brasil. Falou alto aqui por narrar muitos momentos-chave da minha vida e de muita gente. Ainda tece um panorama do presente que dá o que pensar sobre o futuro.
Livro
Trilogia Outline, da Rachel Cusk. Estou quase terminando o terceiro volume e adiando ao máximo pois não quero que acabe. A escrita é brilhante e os personagens ganham forma às custas da narradora, que parece estar ali inicialmente para ser protagonista e acaba servindo como veículo para seus relatos e experiências.
The shops were the same shops you saw in town centres around the world and the bars and cafés were touristic versions of themselves in the same inevitable way as everywhere else, and so this regeneration, she said, begins to look a little like a mask of death. Europe is dying, she said, and because every separate part is being replaced as it dies it becomes harder and harder to tell what is fake and what is real, so that we might not realise until the whole thing has gone.
Kudos: A Novel (Outline Trilogy Book 3)
Música
Loose Future, Courtney Marie Andrews. Disco de 2022 da cantora que recentemente abriu a tour europeia do Wilco. Americana com um pé no pastoral e outro em bar de beira de estrada.
Julian Lage, Love Hurts (2019): o primeiro álbum auto-produzido pelo fenômeno do jazz. Gravado ao vivo no estúdio e quase todos os números no primeiro take, demonstra parte da obsessão do artista em achar os timbres perfeitos para contar uma história. Jazz, mas uma pilha mais cavernosa. O baixão, a guitarra distorcida, o climão. Parece um disco instrumental do Tom Waits em alguns momentos. E a versão de Love Hurts é ao mesmo tempo mais alegre e mais suja. Lage ainda é um gentleman absurdamente eloquente e que transmite uma paz quase desconfortável quando fala. Recomendo também essa entrevista dele com Rick Beato, onde fala mais sobre algumas das suas escolhas técnicas idiossincráticas e sua jornada como músico prodígio que agora foca basicamente no que é essencial e vital.
Era isso. Cuidem-se.